O Holodomor na Ucrânia foi um genocídio?

Diversas entidades de ucranianos têm trabalhado ao redor do mundo para que governos reconheçam a fome provocada por Josef Stalin, o Holodomor, que matou cerca de 4 milhões na Ucrânia entre 1932 e 1933, como um genocídio.

No Brasil, o senador Alvaro Dias, do Podemos do Paraná, apresentou um projeto de lei em 2022 com tal fim. Diz o texto da PEC 423:

Percebe-se pela análise de documentos que houve a decisão de utilizar a fome – provocando artificialmente o seu alastramento – para “dar uma lição” aos camponeses. No decurso da tragédia, o Estado soviético continuava a exportar milhões de toneladas de cereais para o estrangeiro e acumulava enormes reservas estratégicas. Podemos citar, entre outras medidas tomadas que agravaram a situação, multas em gêneros alimentícios, interdição de comercialização de alimentos, bloqueio ao fornecimento, inclusive com a proibição de procurar comida na Rússia ou levar para a Ucrânia. Esta última medida impediu também o êxodo de centenas de milhares de camponeses ucranianos, que em desespero procuravam obter comida noutras zonas.”

A conclusão então é que:

A morte pela fome imposta a milhões de ucranianos, por meio da coletivização forçada e do confisco da produção local, personifica um genocídio incontestável perpetrado pelo regime stalinista contra o povo ucraniano.”

A PEC também pede que seja instituído o “Dia de Memória do Holodomor” no quarto sábado de novembro.

Contudo, é difícil enquadrar o Holodomor como um genocídio pelo Direito Internacional.

Segundo a Convenção da ONU para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, concluída em Paris a 11 de dezembro de 1948 e assinada pelo Brasil quatro anos depois, entende-se por genocídio atos, “cometidos com a intenção de destruir no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso“.

Quando a convenção foi assinada, estavam frescas nas memórias dos diplomatas os massacres dos armênios pelos turcos e dos judeus pelos nazistas. Armênios e judeus se encaixam facilmente nessa categoria.

Convenção da ONU sobre genocídio, em 1948

Para que o Holodomor, portanto, seja considerado um genocídio seria necessário identificar qual grupo “nacional, étnico, racial ou religioso” foi alvo de Stalin.

Seria esse grupo-alvo o dos ucranianos, apelando para o seu caráter nacional? Bem, as políticas de Stalin foram principalmente contra os camponeses, e não contra toda a população do país, que então fazia parte da União Soviética. Havia até ucranianos em seu governo, como Nikita Krushchev. Além disso, no verão de 1933, as políticas de Stalin foram encerradas antes que fizessem mais vítimas.

Seria então os kulaks, os camponeses que eram um pouco mais ricos que os demais por terem uma ou duas vacas ou por contratarem mão de obra?

A vontade soviética em eliminar os kulaks pode ser vista claramente em diversas declarações de bolcheviques. No livro Fome na Ucrânia: Os relatos no front do Holodomor, o jornalista galês Gareth Jones (leia mais sobre ele abaixo) narra uma conversa com um “jovem comunista entusiasmado e enérgico“, que era presidente de um soviete de uma aldeia. Diante dele, os camponeses mais velhos se curvavam e tiravam os chapéus respeitosamente.

Tínhamos 40 famílias kulaks e mandamos todas embora. Não bastava enviar apenas os homens, porque devemos arrancar todos os elementos kulaks pela raiz, Então, enviamos as mulheres e crianças também. Eles foram todos para (o campo de trabalhos forçados de) Solovki ou para a Sibéria cortar madeira ou trabalhar nas ferrovias“, disse o jovem para Jones. A palavra de ordem era a “deskulakização“.

A questão é que os kulaks podem ser considerados um grupo social ou político, mas não um “grupo nacional, étnico, racial ou religioso“, como pede a legislação internacional sobre genocídio.

Essa dificuldade não ocorre por acaso. Nas minutas iniciais da Convenção da ONU sobre o assunto, a lista incluía “grupos políticos” como potenciais vítimas do genocídio.

A Rússia, entretanto, sabendo que poderia ser culpada por perpetrar genocídio contra ‘grupos políticos’ — os kulaks, por exemplo —, resistiu a essa definição mais ampla”, escreve Anne Applebaum no livro Fome Vermelha.

Os soviéticos sabiam que se uma definição ampla fosse aprovada eles poderiam ser responsabilizados por um genocídio na Ucrânia. Sendo assim, trabalharam para que a definição estivesse “organicamente vinculada ao nazifascismo e a outras teorias raciais similares“.

Esse trabalho dos diplomatas soviéticos nos anos 1940 faz com que, ainda hoje, seja difícil considerar o Holodomor como um genocídio segundo o Direito Internacional.

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