A destruição de Putin e as viagens de Gareth Jones

O jornalista galês Gareth Jones visitou a União Soviética três vezes na década de 1930. Foi o primeiro estrangeiro a ir para a Ucrânia depois que o governo stalinista proibiu viagens para fora de Moscou, em fevereiro de 1933. Então, ele testemunhou o Holodomor a morte de 4 milhões de camponeses pela fome. Sua aventura inspirou o filme Mr. Jones: a sombra de Stalin, disponível na Netflix.

O que pouca gente sabe é que Gareth Jones visitou muitas das cidades ucranianas agora sob a mira da artilharia russa e de mísseis hipersônicos. Uma das viagens mais marcantes foi para Hughesovka, cidade fundada por um grupo de imigrantes galeses que viviam em torno de John Hughes, um industrial. A mãe de Jones cuidou dos filhos de Hughes no século XIX e contou para o filho muito de suas histórias na União Soviética. Em todas as oportunidades que teve, o jornalista foi lá conferir o lugar onde sua mãe tinha morado. Nessa época, Hughesovka já tinha mudado de nome para Stalino. Mais tarde, passaria a se chamar Donetsk.

Na primeira carta que envia a seus parentes logo após deixar a União Soviética pela primeira vez, Gareth Jones escreve:

Na Bacia do Donets (Donbas), as condições são insuportáveis. Milhares estão partindo. Nunca vou me esquecer da noite que passei na estação ferroviária a caminho de Hughesovka (Donetsk). O que me fez deixar Hughesovka tão rapidamente foi que só consegui comer um pãozinho — e isso até as 7 horas. Muitos russos (soviéticos) estão fracos demais para trabalhar. Eu sinto muito por eles. Eles não podem fazer greve, porque seriam fuzilados ou enviados para a Sibéria. Há um monte de inimigos dos comunistas dentro do país.

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Em 2014, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, enviou soldados disfarçados para invadir Donetsk e Luhansk. Desde então, essa parte leste da Ucrânia tem sido palco de batalhas sangrentas. Até a terça, 27 de setembro, as autoridades pró-Rússia farão referendos nessas províncias, em que a população dirá se quer se unir à Rússia. Como essas consultas são totalmente manipuladas, é certo que o resultado será favorável ao Kremlin. Mas a realidade é que muitos ucranianos que falam russo rejeitam a invasão ordenada por Putin e consideram os russos invasores e imperialistas.

Quando Gareth Jones esteve na Ucrânia, ele viu uma situação semelhante. Embora não houvesse guerra naquela época, uma decisão tomada por um único homem em Moscou, Josef Stalin, resultou na morte de muitos cidadãos ucranianos. O Plano Quinquenal anunciado em 1928 obrigou os camponeses a aderirem às fazendas coletivas e confiscou a produção de cereais. Quase 4 milhões de ucranianos morreram de fome, principalmente entre 1932 e 1933 – o Holodomor.

Na Ucrânia, o movimento por autonomia política está sempre crescendo e os ucranianos odeiam os grandes russos com raiva cada vez maior“, escreveu Jones em Fome na Ucrânia: Os relatos do front do Holodomor.

Ao descer em uma estação de trem perto da fronteira entre Ucrânia e Rússia e caminhar por vinte aldeias em direção a Kharkiv, então a capital, Jones relatou algumas conversas com camponeses. Segue um trecho:

‘Os comunistas vieram e tomaram nossas terras, roubaram nosso gado e tentaram nos fazer trabalhar como servos em uma fazenda onde quase tudo era propriedade comum'” — os olhos do grupo de agricultores ucranianos brilharam de raiva enquanto falavam comigo — “e sabe o que fizeram com aqueles que resistiram? Atiraram neles impiedosamente.

Stalin não mostrou nenhum respeito pela vida de milhões de camponeses ucranianos, que eram vistos como cidadãos de segunda classe.

Crédito: Museu do Holodomor

Algumas das aldeias visitadas por Jones estavam vazias devido à deportação de sua população para campos de trabalho e mortes por fome. Cartas enviadas por ucranianos a seus parentes na Alemanha citavam casos de canibalismo. Na visão do Kremlin, a única função dos ucranianos era fornecer trigo e outros grãos ao regime soviético.

Em uma entrevista com o ex-primeiro ministro soviético Alexander Kerensky, no exílio, o russo conta para o jornalista sobre como Lênin via a personalidade de Stalin, o que lança algumas luzes sobre o comportamento de Putin. Diz Kerensky, no mesmo livro Fome na Ucrânia:

Lênin tinha em mente a teimosia de Stalin (cuja força de vontade é mais forte que sua razão) e sua ausência do sentimento de medo. Quando Stalin está convencido de algo ou deseja obtê-lo, ele segue em frente, independentemente das consequências. Essas duas características combinados, teimosia e ausência de medo, fizeram de Stalin o coveiro da ditadura bolchevique.”

Casa destruída por mísseis russos. Crédito: Polícia de Kharkiv

Ao longo de setembro de 2022, uma contraofensiva ucraniana conseguiu expulsar as tropas russas que estavam entre Kharkiv e a fronteira russa. Essa mesma distância, em torno de 40 quilômetros, foi percorrida a pé por Gareth Jones em 1933. Mais uma vez, esse território é um testemunho das consequências da arrogância e do imperialismo russos. Seja com Stalin, seja com Putin.