O liberalismo de Gareth Jones, George Orwell e a herança do Império Britânico

O jornalista galês Gareth Jones — que inspirou o filme Mr. Jones, a sombra de Stalindeclarava-se abertamente um liberal. Ele também foi assessor do ex-primeiro-ministro David Lloyd George, que comandou o Partido Liberal, até que esse fosse suplantado pelo Partido Trabalhista.

Em seu livro Fome na Ucrânia: Os relatos do front do Holodomor, a primeira tradução de suas reportagens para o português, Jones deixa clara sua visão de mundo. Depois de entrevistar a viúva de Lênin, Madame Krupskaya, ele faz reparos a suas opiniões. Conhecida como “Mãe da Rússia“, ela defendia a educação politécnica, em que os estudantes deveriam aprender principalmente como funcionavam as máquinas. O ensino soviético, portanto, pretendia criar apertadores de botão e giradores de manivelas, que deveriam visitar as fábricas com frequência para aprender os processos de produção.

Enquanto ela falava, eu me perguntava se ela não estava dando muita ênfase ao material e ao conhecimento técnico na Rússia e se não havia outras coisas, como a liberdade, incluindo a de expressão e a religiosa, que eram infinitamente mais importantes, ponderou Jones.

Após conversar com um russo que acreditava que todos os comunistas britânicos estariam presos na Torre de Londres, tal qual acontecia com os inimigos do Estado na União Soviética, Jones tentou ser didático ao falar da liberdade de expressão em seu país:

Essa é uma coisa da qual nós britânicos nos orgulhamos muito. Uma pessoa pode ter as opiniões que quiser. Se você é comunista, pode ir para um lugar como o Hyde Park e dizer o que quiser.”

O soviético não entendeu nada.

Enquanto Jones se declarava um liberal, Orwell se dizia um “socialista-democrático“. Mas, ao se deparar com a repressão e a censura dos comunistas espanhóis apoiados pelos soviéticos em sua passagem pela Guerra Civil Espanhola, Orwell ficou indignado. Em seu Por que escrevo, ele se declara contra o totalitarismo: “Cada linha de trabalho sério que fiz desde 1936 foi escrita, direta ou indiretamente, contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrático”.

Fome na Ucrânia, o livro que inspirou o filme A Sombra de Stalin

É fácil ver em Homenagem à Catalunha que George Orwell compartilha da defesa de valores liberais, como a liberdade de expressão e a proteção do cidadão comum contra governos despóticos.

Os dois jornalistas britânicos compartilham os mesmos princípios, pois foram esses mesmos valores que o Império Britânico valorizava e ajudou a disseminar pelo mundo, embora Orwell fosse um crítico fervoroso do império (sua passagem como policial na Índia foi determinante para fomentar esse ódio). Mas, em um ambiente democrático, com imprensa livre e parlamento, essa autocrítica era comum.

Como escreve Niall Ferguson, em seu livro Império:

Toda vez que os britânicos se comportavam despoticamente, quase sempre havia uma crítica liberal a esse comportamento vinda de dentro da sociedade britânica. Na verdade, essa tendência a julgar a conduta imperial pelo padrão da liberdade era tão poderosa e consistente que deu ao Império Britânico um certo caráter autodestrutivo. Uma vez que uma sociedade colonizada tivesse adotado suficientemente as outras instituições que os britânicos traziam consigo, ficava muito difícil para os britânicos proibir aquela liberdade política a que eles mesmos davam tanta importância.”

Orwell podia criticar o quanto quisesse o Império Britânico, mas é inegável que ele trazia consigo os seus valores. Sua aversão ao totalitarismo, que ele compartilha com Gareth Jones, é um exemplo claro disso. Foi essa ojeriza ao abuso de poder, aliás, que o levou a produzir duas obras-primas: 1984 e Revolução dos Bichos. Todas valem a leitura 😉