Gareth Jones foi um jornalista melhor que George Orwell?

Gareth Jones

George Orwell e Gareth Jones foram ambos escritores britânicos. Mesmo sem se conhecerem ou lerem textos um do outro, eles tinham ideias muito parecidas. Ao viajar pela Europa na década de 1930, eles testemunharam os efeitos da mão forte da União Soviética sob o comando de Josef Stalin. Orwell viu comunistas apoiados por Moscou perseguindo, detendo, torturando e matando esquerdistas durante a Guerra Civil Espanhola. Essa história ele contou no livro Homenagem à Catalunha e Recordando a Guerra Civil Espanhola. Jones conversou com muitos camponeses que foram forçados a ingressar em fazendas coletivas e tiveram seus grãos confiscados pelo governo. Quatro milhões morreram de fome no Holodomor. Suas reportagens foram traduzidas no livro Fome na Ucrânia: Os relatos do front do Holodomor, recém-lançado pela Avis Rara.

No final, Orwell e Jones tiveram suas vidas fortemente impactadas pelo poder soviético. Orwell teve que fugir de Barcelona com sua esposa para evitar ser detido pelos comunistas. Jones teve menos sorte. Ele foi morto na China por bandidos ligados à política secreta soviética.

Além de suas ideologias e visões políticas – Orwell era um socialista democrático e Jones, um liberal – ambos também podem ser julgados por seu desempenho como jornalistas. Sob esse critério, entendo que Jones, embora menos conhecido que Orwell, foi um repórter melhor que seu colega.

Jones estudou língua e história russa em Cambridge por quatro anos antes de viajar pela primeira vez para a URSS em 1930. Enquanto trabalhava nos EUA, estudou a Revolução Russa em bibliotecas de Nova York. Ele também era um leitor assíduo de jornais russos. Quando passou pela “Rússia Soviética”, como ele a chamava, estava muito ciente de todas as forças que atuavam na sociedade.

O livro Fome na Ucrânia traz as histórias que inspiraram o filme A Sombra de Stalin

Já Orwell começou a prestar atenção à Espanha apenas alguns meses antes de ir para Barcelona. Em seus textos, ele admitiu que era ingênuo em muitos aspectos. “A atmosfera revolucionária de Barcelona me atraiu profundamente, mas não tentei entendê-la”, confessou Orwell. “Quanto ao caleidoscópio de partidos políticos e sindicatos, com seus nomes cansativos – PSUC, POUM, FAI, CNT, UGT, JCI, JSU, AIT – eles apenas me exasperaram. À primeira vista, parecia que a Espanha estava sofrendo de uma praga de iniciais.” Ele não entendia as diferenças entre os grupos espanhóis e se juntou à milícia Poum por acaso. Depois, passou a defender o grupo totalmente alheio a suas atrocidades.

Durante seu tempo nas trincheiras, Orwell também confessou que estava coletando poucas informações sobre a guerra civil e que as pessoas de longe conseguiam ter uma compreensão melhor dos acontecimentos do que ele.

Jones teve um acesso muito melhor às pessoas do que Orwell. Como secretário do ex-primeiro-ministro britânico David Lloyd George, ele agendou entrevistas com autoridades soviéticas, como ministros e a viúva de Lenin. Em três viagens à União Soviética, ele conversou com todo mundo que encontrou pelo caminho, como camponeses, mendigos e operários. Em uma das melhores cenas de seu livro Fome na Ucrânia: relatos do front do Holodomor, ele entra em um cortiço perto de Moscou que estava com a porta aberta e começa a falar com os seus moradores, para aprender “como vivem os trabalhadores“. Jones foi ágil em registrar essas conversas e seus textos estão repletos de frases de seus entrevistados. Ele também leu todos os cartazes e as faixas pendurados pelo país. Ao narrar tudo o que encontrou pelo caminho, Jones constrói uma sólida credibilidade com o leitor.

Cartazes coletadas por Gareth Jones na União Soviética. Espólio de Margaret Siriol Colley

Orwell não falava espanhol e tinha que contar com um dicionário de bolso para se comunicar com os outros. Mais problemático é que seu conhecimento de catalão era quase nulo. E a maioria das pessoas pobres em Barcelona e nas outras cidades que ele visitou só falava catalão. Então, ele teve que reunir informações a partir de um círculo limitado de pessoas. Quando outros cidadãos britânicos chegaram para se juntar à guerra, eles foram unidos para lutar juntos, o que afastou ainda mais Orwell dos locais.

Mas ambos podem ser admirados por serem repórteres curiosos e investigativos. Embora tivessem uma visão de mundo anterior, eles também estavam prontos para mudar suas opiniões depois de testemunhar os fatos no terreno. Orwell mudou totalmente sua visão sobre os comunistas durante a Guerra Civil Espanhola e começou a denunciar seus abusos, não apenas os do exército fascista. Suas conclusões sobre o estado stalinista totalitário foram essenciais nos dois livros que ele escreveu depois da guerra, 1984 e Revolução dos Bichos.

Jones fez três viagens à URSS. Na primeira, ainda tinha a expectativa de que a industrialização da Rússia e das fazendas coletivas pudesse dar certo e ajudar o país a ser uma grande potência. Em sua última visita, durante o Holodomor (morte por fome), já não havia a mínima esperança de que o Plano Quinquenal de Stalin pudesse ajudar a Rússia e seu povo.

Mas, mesmo enfrentando algumas dificuldades, Orwell demonstrou mais talento que Jones para produzir peças literárias. Seu parágrafo final de Homenagem à Catalunha é uma obra de arte. Jones, por sua vez, foi um jornalista mais metódico, que reunia todas as informações que podia. As frases que ele coletou de camponeses falando sobre a fome são impressionantes e comoventes. “Deixe os camponeses falarem sozinhos“, escreveu ele uma vez. No conjunto, essas declarações formavam um retrato muito fiel da situação no país.

Melhor do que dizer que um é melhor que o outro é apreciar o trabalho desses dois jornalistas britânicos atentos aos seus perfis e características pessoais. Com uma guerra atualmente devastando a Ucrânia, este parece ser um momento apropriado para lembrar outro período em que um líder autocrático russo oprimiu milhões de pessoas sem qualquer respeito por sua liberdade e soberania. Para terminar este artigo, copio o último parágrafo da Homenagem à Catalunha de Orwell, quando ele está retornando de trem após sua aventura na Espanha:

E então a Inglaterra – o sul da Inglaterra, provavelmente a paisagem mais aprazível do mundo. É difícil, quando se passa por ali, principalmente quando se está recuperando pacificamente de um enjoo do mar sentado em uma almofada macia de um vagão de trem, acreditar que alguma coisa está realmente acontecendo em algum lugar. Terremotos no Japão, fome na China, revoluções no México? Não se preocupe, o leite estará na porta amanhã de manhã, o New Statesman sairá na sexta-feira. As cidades industriais ficavam muito longe , uma mancha de fumaça e miséria escondida pela curvatura da Terra. Aqui embaixo ainda era a Inglaterra que conheci na minha infância: os trilhos das ferrovias cobertos por flores silvestres, os prados profundos onde os grandes cavalos reluzentes pastam e meditam, os riachos vagarosos cercados por salgueiros, os bosques verdejantes dos olmos, as flores nos jardins dos chalés; e, em seguida, a imensidão pacífica dos arredores de Londres, as barcaças no rio lamacento, as ruas familiares, os cartazes anunciando os jogos de críquete e os casamentos reais, os homens com chapéu-coco, os pombos na Trafalgar Square, os ônibus vermelhos, os policiais de azul – todos dormindo no sono profundo da Inglaterra, do qual eu às vezes temo que nunca iremos acordar até que sejamos arrancados dele pelo rugido das bombas.”

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